dramaturgias & aparições

No decorrer do programa, foi lançado um repto a dramaturgos e escritores para colaborarem com textos relativos à temática inscrita no "Guerras/Crises".
O propósito era promover um diálogo com quem escreve, recuperando ideias e visões (políticas, sensitivas, emocionais) sobre o escrever em e para teatro. Após um trabalho de exploração, que decorreu entre Dezembro de 2011 e Fevereiro de 2012, esses trabalhos seriam então integrados no "Ponto de Encontro".
Esta exploração teve três fases:
1. exploração dos textos ("dramaturgias em rascunho");
2. alguns confrontos das ideias em rascunho em espaços públicos ("aparições");
3. adaptação ao guião do "Ponto de Encontro".


DRAMATURGIAS EM RASCUNHO


Os textos explorados foram os seguintes:
"A estufa", de Abel Neves
"Hoje não há música", de Carlos Alberto Machado
"Café Bar", de Rui Sousa
"Olhar para longe", de Firmino Bernardo
"A morte de um soldado", de Carlos Alberto Machado
"O cavalo", cena extraída de "Monstros de Vidro", de Ana Vitorino e Carlos Costa (Visões Úteis)
"Na Guerra", de Rui Pina Coelho

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os textos:

A ESTUFA de Abel Neves 


"Três casais encontram-se fechados numa “estufa” para se protegerem do mal proveniente de alguns dos habitantes do habitat dos ditos casais; que mal é esse?! ... é o medo que o ser humano tem pelo desconhecido."

(...)
TERCEIRO HOMEM
A mim, podem-me gravar à vontade com a marmita. O importante é aparecer. O sucesso
faz-se... aparecendo. Uma pessoa aparece, vai aparecendo, e o sucesso vem. E depois as
pessoas de sucesso aparecem. Aparecer é muito importante. Quanto mais uma pessoa
aparece mais os outros pensam que ela bem sucedida. Por instantes, ouve-se um sinal sonoro de
aviso contínuo. Todos escutam.
PRIMEIRA MULHER
Para a Segunda Mulher. Agora já pode.
SEGUNDA MULHER
Pulverizo?
PRIMEIRO HOMEM
Pulverize.
SEGUNDA MULHER
Basta carregar com o dedo?
(...)

HOJE NÃO HÁ MÚSICA de Carlos Alberto Machado

"O texto fala-nos da de um homem sem pátria, crente no Islão que decide (depois muita reflexão e anos de sofrimento) ser bombista suicida. Ele conta várias histórias, fala da guerra, do medo, do ódio, da mentira, do crime, de Deus – da crença. “Talvez por ele, por esse ódio, afinal, vocês passem todos a ser culpados e sofram a morte (…)” 


(...)
Foi mais ou menos há quatro meses. Eu estava ao fim da tarde na zona das esplanadas junto ao Tejo a vender óculos de sol num pequeno pano no chão. Esse homem, jovem, parou junto ao pano. Pegou nuns óculos e perguntou o preço. E agora vou dizer-vos exactamente como tudo depois se passou, mil anos mais eu vivesse e nunca o esqueceria. Disse-lhe: “Sete euros e meio, senhor”. E ele: “É muito caro”. “O dinheiro é para eu comer, senhor, não posso vender mais barato”, respondi. Os olhos do homem escureceram e perguntou: “Qual é a tua religião?” “Sou muçulmano, senhor.” Depois, o homem pôs os pés em cima do pano e começou muito devagar a esmagar todos os meus óculos. Quando acabou, disse muito alto: “Filho da puta de terrorista!” Não sei o que me passou pela cabeça porque lhe disse: “Sou terrorista sim, meu senhor.” E de repente apareceram dois polícias, até parecia que estavam ali a ver e a ouvir tudo. Passei dois meses numa cela. Dois meses de insultos e porrada. Quando tiveram a certeza que eu era mesmo português e não tinha nem amigos nem conhecidos terroristas deixaram-me sair. E eu já sabia que dentro de pouco tempo ia estar, como agora estou, com o corpo cheio de explosivos e pronto a matar e a morrer.
(...)

CAFÉ-BAR de Rui Sousa

... aborda um assunto que faz lembrar “ A Teoria da Conspiração, e de conversas cobre assuntos secretos entre duas personagens anónimas, que aparentam não se conhecer, mas que têm uma certa confidencialidade...

(...)
ELE: É agora que me vão deter?
ELA: Não. Ainda estão à espera.
ELE: À espera de quê?
ELA: À espera do meu sinal. É suposto fazê-lo falar. Para termos a certeza.
ELE: E se não fizer sinal?
ELA: Isso é uma declaração de culpa?
ELE: Não. É uma pergunta.
ELA: Se não fizer sinal, vai acabar o seu whisky, sai por aquela porta, e nunca mais nos voltamos a encontrar.
ELE: Nesta vida? Faz-me quase querer ser culpado.
ELA: Depois alguém vai entrar e perguntar-me as horas. Eu respondo que os saltos me fazem doer. E se por um infeliz acaso, o pobre desgraçado disser que o destino dos nossos passos está nas nossas mãos...
ELE: Voilà. É esse o código?
ELA: Do seu contacto? Julguei que soubesse.
ELE: O que quer em troca? Dinheiro, é isso? Suponho que uma causa maior não me safe desta, certo?
ELA: Certo. Mas há uma questão que me inquieta. Este não é o código.
ELE: Não, não é o código. Disseram-me que perguntasse as horas à mulher que estaria sentada ao balcão com um vestido vermelho. Ela responderia que é tarde, o que faz de si minha cúmplice ou minha delatora.
ELA: Ameaçaram-me. Não resisti.
(...)

OLHAR PARA LONGE de Firmino Bernardo

Um pai conta ,angustiado, como vai a vida profissional do filho. Os planos que tinha para ele, o futuro que pensava que o seu filho iria ter … E todos esses sonhos desapareceram, quando o filho tenta entrar no mundo do trabalho.

(...)
Um dia disse-me que tinha arranjado um estágio. Ia ficando sem voz de tanta alegria! O meu filho ia ganhar bom dinheiro, ia ser independente, eu e a Lucinda até podíamos trabalhar um bocadinho menos. Mas depois ele explicou-me que não era bem assim. Aquilo não era um emprego, era um estágio! “Mas o que é isso, um estágio?” E o rapaz lá me explicou. Tinha um curso com boa média, mas ninguém lhe dava emprego, por falta de experiência. Por isso tinha de ir trabalhar só pela experiência e quando a tivesse é que podia arranjar um emprego.
(...)

A MORTE DE UM SOLDADO de Carlos Alberto Machado

 ... dois soldados portugueses num aquartelamento em Kosovo, uma rapariga destroçada pela guerra do seu povo de Kosovo contra os sérvios, e uma mulher grávida em Portugal à espera do regresso do seu marido da guerra ...
(...)
Dia. Kosovo. Klina. Campo contaminado
PAULO
Eh, menina, nao pode andar aqui.
KATRITĚ
Aqui, e a minha terra.
PAULO
Nao... pois claro, e a sua terra, mas neste campo nao se pode andar agora, pode
estar... agradeco-lhe...
KATRITĚ
Pode estar contaminado, eu sei.
PAULO
Agradeco-lhe que va para aquela estrada.
KATRITĚ
Quer agua?
PAULO
Como?!
KATRITĚ
Estou a perguntar-lhe se quer agua.
PAULO
Nao, obrigado.
KATRITĚ
Estou a oferecer-lhe agua.
(...)
O CAVALO de Carlos Costa e Ana Vitorino

...um dos pontos de maior interesse para uma discussão seja a forma como as pessoas se conseguem controlar e manipular umas às outras...

(...)
PEDRO - Eu queria que me vendesse um cavalo.
CARLOS – Desculpe?
PEDRO – Um cavalo.
CARLOS – Um cavalo?
PEDRO – Um cavalo. Disseram-me que tinha um cavalo para vender.
CARLOS – Disseram-lhe que eu tinha um cavalo?
PEDRO – Eu sei que tem um cavalo.
CARLOS – Isso é uma metáfora? Não está a falar de droga, pois não?
PEDRO - Não. Um cavalo. Um animal.
CARLOS – Ah, mesmo um animal.
(...)

NA GUERRA de Rui Pina Coelho

... um pequeno texto sobre guerra. acho que gostava muito - tenho uma ideia que gostava de testar...

(...)
6.
Um puto de jeans e t-shirt corre para um pelotão de polícia de choque. Todos fogem, ele investe. À carga! Está na hora de arreganhar os dentes. Os polícias têm bastões, cassetetes, fardas, armas, músculos. Não importa. Um puto de jeans e t-shirt corre para um pelotão de polícia de choque. À carga.
(...)


APARIÇÕES


Excerto de "Café-Bar" no Bar Molhóbico, no dia 25 de Janeiro de 2012
  

Apresentações de "O Cavalo" nas ruas da cidade de Évora, Fevereiro de 2012